Review — Fallen Angels (1995)

Review — Fallen Angels (1995) — O vazio existencialista e a tarefa tantalizante de se encontrar no outro.

Depois de um tempo sem escrever e um tempo ainda maior sem assistir a um bom filme, eu finalmente decidi tirar um tempo para ambas as coisas, e nada melhor do que uma obra de arte como o filme Fallen Angels do diretor Wong Kar-Wai para me colocar de novo em movimento. 

Fazia um tempo que eu queria assistir a esse filme. Desde que eu assisti Chungking Express, eu me apaixonei pelo tom melancólico das histórias de amor perdido e os desencontros na busca de se conectar com outra pessoa e procurei saber um pouco mais sobre o diretor e sua filmografia. A história principal de Fallen Angels foi idealizada inicialmente como parte do conjunto de histórias de Chungking Express, entretanto, foi removida posteriormente por ser mais densa e sombria do que as histórias de seu predecessor. Não entenda errado, ambos os filmes são extremamente melancólicos, mas os temas abordados são diferentes. Enquanto Chungking Express é sobre quebrar a rotina e deixar o passado para trás, e talvez o maior perigo que existe no romance — a mudança, Fallen Angels é uma análise existencialista sobre personagens atormentados por outro demônio  — a tragédia de se comunicar. Estes temas estão presente em ambos os filmes (uma vez que foram planejados com um único longa metragem), mas dá para fazer uma certa distinção entre eles.

O filme começa com uma das cenas que é essencial para entender a tragédia dos personagens principais.



The Killer's Agent: Are we still partners? 
Wong Chi-Ming: [voiceover] We've been business partners for nearly three years. This is the first time we've ever sat together. We hardly ever see each other. I know how hard it is for a man to control his passion. Partners shouldn't get emotionally involved with each other.

A Agente do Assassino: Ainda somos parceiros? 
Wong Chi-Ming: [narrando] Somos parceiros de negócios há quase três anos. Esta é a primeira vez que nos sentamos juntos. Quase nunca nos vemos. Sei o quanto é difícil para um homem controlar sua paixão. Parceiros não devem se envolver emocionalmente um com o outro.

Essa cena que acontece nos primeiros minutos do filme, antes mesmo da cartela de título do filme e que é repetida um pouco antes de sua conclusão, comunica tudo que precisamos saber sobre os personagens. Wong Chi-Ming é um assassino extremamente Niilista. Para ele a vida não tem um significado intrínseco e por isso não vê problemas em tirá-la dos outros, ou perdê-la ele mesmo. A vida é transiente e pode acabar a qualquer momento, não existe motivos para preservá-la e isso pode ser visto no próprio estilo de combate de Chi-Ming, ele não procura se proteger e está sempre exposto à linha de tiro do inimigo enquanto os executa. 

Entretanto, ao longo do filme podemos vê-lo se questionando sobre essa vacuidade da vida (me lembra uma frase do livro de Eclesiastes: Vanitas vanitatum et omnia vanitas — que para mim sempre teve vários significados diferentes, mas um deles que combina bastante com o personagem é o de que todas as nossas ações enquanto humanos são um ato vazio, motivado principalmente pela nossa vaidade — não há realmente diferença nas escolhas que fazemos, nem valor em fazer julgamentos sobre as ações, sejam elas nossas, ou dos outros — no fim voltaremos ao pó), o que é confirmado pela cena em que encontra um conhecido da época do colegial no ônibus. Chi-Ming contempla por um breve instante as suas escolhas, sua vida fabricada e sua falta de significado. Ele parece tentado a abandonar o estilo de vida cheio da vacuidade que enxerga para abraçar um estilo de vida mais mundano, quem sabe com algum propósito. 

Essa dança constante entre querer que a vida tenha significado e a sua crença de que a vida é vazia é sublinhada o tempo todo durante o filme e representada magistralmente na forma como o diretor de fotografia Christopher Doyle faz alguns dos enquadramentos, sendo a principal: o apartamento. O apartamento de Chi-Ming retrata muito bem o estado interno do personagem. Como descrito por um comentário que eu encontrei no Reddit: "Wong Chi-Ming é filmado de maneira voyeurística de fora de seu apartamento, de modo que a câmera captura tanto ele do lado de dentro quanto o metrô em movimento constante passando do lado de fora. Esses dois símbolos descrevem muito bem o seu personagem: sua inércia existencial e imobilidade (simbolizadas pelo edifício estático que o prende) aliadas aos seus constantes sonhos de trânsito, saída e, ultimamente, fuga (simbolizadas pelo metrô que ele é obrigado a observar pela janela)". 

Wong Chi-Ming é um homem prisioneiro de sua própria inflexibilidade, incapaz de tomar as decisões para se livrar do seu tormento interno.

Ao longo do filme essa inércia do personagem é colocada em evidência. Em um momento ele se enxerga como uma ferramenta e não como uma pessoa, levando um estilo de vida robótico.

Wong Chi-Ming: The best thing about my profession is that there's no need to make any decision. Who's to die... when... where... it's all been planned by others. I'm a lazy person. I like people to arrange things for me. That's why I need a partner.

Wong Chi-Ming: A melhor coisa sobre minha profissão é que não há necessidade de tomar nenhuma decisão. Quem vai morrer... quando... onde... tudo foi planejado por outros. Sou uma pessoa preguiçosa. Gosto que as pessoas organizem as coisas para mim. É por isso que preciso de um parceiro.

Mas no próximo momento, quando ele leva um tiro e retorna ao apartamento, ele se questiona sobre a natureza das suas ações, inclusive até planeja abandonar a profissão e contactar sua agente para comunicá-la disso. Só que no último instante ele dá um passo atrás e não comparece a esse encontro.

A agente, por sua vez se encontra no outro lado da tragédia. Ela acabou se apaixonando pelo assassino, apesar de nunca ter sequer o visto. Inicialmente houveram algumas cenas com um certo tom de erotismo da garota com um jukebox que não ficaram claras para mim até que posteriormente o filme revela o diálogo não escrito entre os dois. Existe um desejo físico e emocional pela imagem de um homem-mistério, um relacionamento não realizado com o quebra-cabeça de um homem que ela nunca conheceu, e sua tarefa é tantalizante — e aqui, para quem não conhece a história da mitologia grega, Tântalo foi um rei da Lídia que tentou enganar os deuses ao se comparar com eles e foi punido sendo enviado ao tártaro, colocado em um lago com água até o queixo e um ramo de frutas deliciosas pendendo sobre sua cabeça. No entanto, sempre que tentava beber a água, ela se retraia, e quando tentava alcançar as frutas, elas se afastavam, sendo assim, uma tarefa tantalizante é uma tarefa dita desejada, mas inalcançável — algo que parece estar ao seu alcance, mas ainda assim inacessível.

Dessa forma, vemos que a Agente vive uma vida de futilidade que é análoga à de Wong Chi-Ming; enquanto Wong se divide entre o sonho de uma vida fora do crime e a sua realidade vazia, a Agente se encontra também inerte, frustrada com o relacionamento parassocial que desenvolve com o homem que não pode conhecer. O que piora a sua situação é que Wong Chi-Ming deixa clara a sua posição em relação a ela por meio da música de código 1818 no jukebox.


“Forget him, and it’s like forgetting everything. It’s like losing all direction, losing one’s self. Forget him, and it’s like forgetting the joy of life. It’s like a knife in the heart, bleeding in pain..." 

"Esqueça-o, e é como esquecer tudo. É como perder toda direção, perder a si mesmo. Esqueça-o, e é como esquecer a alegria da vida. É como uma faca no coração, sangrando de dor..." 

Essa música desempenha um papel complexo nesta história. Primeiramente, ela destaca como a vida da Agente e seu propósito existencial estão profundamente ligados a Wong: para ela, renunciar a ele seria como desistir da própria vida e de seu significado, uma perda simbólica profunda. Em segundo lugar, e mais crucialmente, a música atua como uma ordem. O título, "Esqueça Dele," é uma frase retirada da letra da música, um comando direto de Wong à Agente, pressionando-a a abandonar a ilusão de que ele é a fonte definitiva de sentido em sua existência. A resposta angustiada da Agente à música reflete essa dualidade intensa: seu sofrimento surge tanto da rejeição por parte de Wong quanto do vazio que se instala ao perceber que não tem mais um objetivo claro para perseguir. É como se ela confrontasse o vazio existencial.

Agora, a Agente se encontra diante de uma decisão crucial. Ela tem a opção de continuar perseguindo Wong — permanecendo, por assim dizer, no lago de água com a fruta inatingível sobre sua cabeça, na esperança de que o ciclo se resolva por si só. Por outro lado, ela pode fazer o salto existencialista: aproveitar a chance de criar seu próprio significado. E é exatamente isso que ela decide fazer. Utilizando suas habilidades criminosas, a Agente decide acabar com a vida de Wong — e, com isso, também elimina a ilusão de que ele sozinho define seu propósito.

Aqui duas ideias se instalaram em minha mente: a primeira é a que define a tragédia do filme — Wong e a Agente são incapazes de quebrar o ciclo coletivamente; para que Wong possa abandonar a vida de assassino, ele também tem que abandonar a Agente, e como ele mesmo diz: "Ela é uma excelente parceira quando se trata de trabalho, mas eu não a vejo como uma companheira para a vida". Por outro lado, a Agente é incapaz de quebrar o ciclo se não matar Wong (literal e figurativamente). A música de Teng, "Esqueça Dele", insinuou que um mundo sem Wong seria frio e desprovido de propósito, e é assim que ela se sente na cena que precede o fechamento do filme — como se os dias fossem de inverno, e por mais que ela se alimente, não se sente saciada. No entanto (e aqui entra a segunda ideia), o final insinua que mesmo que a Agente tenha se tornado mais distante dos outros e, quem sabe, um pouco niilista, ela também descobre que o mundo está repleto de potencial inexplorado e que o amanhã está (figurativamente) no fim do túnel.

E o filme termina assim — com um momento fugaz, enquanto ela viaja como passageira em uma moto, com um homem que ela não conhece, em direção ao amanhecer — pela primeira vez em muito tempo próxima de outro ser humano real, livre de uma vida de obsessão e da noção de que sua existência dependa de outra pessoa para ter significado. É um final melancólico e solitário, mas também um pouco agridoce. Mesmo que ela tenha se tornado um pouco mais distante e, quem sabe, momentaneamente desiludida, ela está finalmente livre para explorar as possibilidades e definir os seus próprios significados.

Eu poderia continuar comentando outros aspectos sobre o filme, mas vou deixar alguns links para quem tiver interessado na estética e em alguma outra opinião sobre o filme.

Algumas outras críticas interessantes:
Um pouco da fotografia do filme: https://www.evanerichards.com/2021/54968

E a propósito, muita gente já deve ter visto o meme:


Sabendo que ele é uma referência direta ao fim do filme, agora provavelmente ele deve ter um pouco mais de significado. (Sim, fiz essa postagem depois de sei lá quantos meses para falar principalmente de um meme 😆😆😆😆).


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Retorno ao Blog e Minhas Músicas Favoritas de 2023

Lidando com a frustração no meio acadêmico