Lidando com a frustração no meio acadêmico

No exercício da rotina acadêmica, somos constantemente confrontados com pequenos momentos de fracasso. O desenvolvimento de uma pesquisa normalmente envolve cometer erros e fazer algumas perguntas erradas. Muitas vezes, chegamos a conclusões corretas a partir de uma sucessão de "e se?", que inicialmente não nos leva a lugar nenhum. No entanto, após alguns momentos de deliberação e estudo, encontramos o fio de Ariadne que nos guia para a resolução do problema, seja ele de caráter prático ou teórico. Trabalho com teoria e, apesar de não possuir muita experiência em minha área de pesquisa, já me deparei com o monstro que todo estudante de doutorado precisa eventualmente derrotar: a frustração.

Quem me conhece sabe que lidar com a frustração é uma tarefa que acaba sendo mais fácil em teoria (hehe) do que na prática. Nesse post eu vou comentar um pouco sobre algumas situações que me deparei ao longo do meu mestrado e que se repetem agora no meu doutorado, e também sobre alguns insights e estratégias que eu coletei, da experiência compartilhada com alguns amigos e alguns pensamentos que adquiri de outros pesquisadores mais experientes que já passaram por essa etapa tão exaustiva da formação acadêmica.

Eu li recentemente em um outro blog que o trabalho de um pesquisador é basicamente dividido em três conjuntos de habilidades: Soft skills, Hard skills, e a Ciência do seu trabalho, em outras palavras: aquelas habilidades que você desenvolve ao longo do seu desenvolvimento pessoal, aquilo que você é treinado para fazer, e o conjunto de conhecimentos padrão de sua área de estudo, aqueles conhecimentos que são considerados senso comum entre os pesquisadores mais experientes. Podemos reduzir de maneira bem grosseira essa tríade em: ser, fazer e saber. Para mim, a capacidade de lidar com a frustração advinda da rotina acadêmica consiste em identificar corretamente e trabalhar os aspectos particulares destas três diferentes competências.

Soft skills - aquilo que somos

Um dos sentimentos mais comuns na academia, principalmente entre os pesquisadores mais novos, é o sentimento constante de incapacidade e o medo de ser uma fraude. Diariamente lidamos com pessoas, muitas delas especialistas no assunto em que estamos começando a nossa carreira. Existe um constante medo do julgamento dos nossos pares, que se desenvolve em uma necessidade de provar que sabemos das coisas — imposta pelo ambiente competitivo, de demonstrar que o tempo que utilizamos estudando e desenvolvendo nossas habilidades não foi gasto em vão, e de que a pesquisa que estamos desenvolvendo de alguma maneira justifica o seu financiamentoAcabamos por nos convencer de que não somos bons o suficiente para desenvolver o nosso trabalho, de que os resultados que conseguimos não são relevantes e de que, de certa forma, estamos ocupando um lugar que não é nosso. Acabamos por desenvolver a chamada síndrome do impostor. 

Por uma grande porção do meu mestrado eu fui esmagado por um sentimento de que o que eu estava fazendo não era relevante e que em qualquer momento alguém me reconheceria pela fraude que eu era. Esse sentimento acabou sendo ainda mais pesado ainda porque eu tinha financiamento público. "Como assim, você está recebendo dinheiro do governo para fazer essa pesquisa (que não tem nenhuma relevância)?", "esse dinheiro podia estar sendo utilizado para outra coisa" e "existem outros pesquisadores muito mais competentes do que você, que poderiam estar fazendo algo de útil no seu lugar", estes foram alguns dos pensamentos que me atormentaram por muito tempo e que só consegui eliminar através das conversas com a minha psicóloga: acabei por entender uma das coisas que eu tinha esquecido ao longo do desenvolvimento de minha pesquisa: aquilo que sou. Eu acabei esquecendo todo o caminho que eu tinha trilhado até aquele ponto.

Antes de seguir para a evidência anedótica e para a conclusão dessa ideia, eu gostaria de compartilhar alguns pensamentos que eu tive durante a minha adolescência e durante toda a minha graduação e que eu acredito que me definem parcialmente. Quem me conhece sabe que eu existem duas frases que eu repito ad nauseam, uma delas é: eu tenho interesses diversos, ficar muito tempo em uma única tarefa me incomoda profundamente, eu fico inquieto e a minha mente normalmente migra para outro dos assuntos que ficaram em stand by. A outra frase que eu uso para me definir é: tudo aquilo que os outros aprendem/aceitam, eu preciso de no mínimo o dobro do tempo para aprender/aceitar. Esta é, quem sabe, uma das frases que melhor define aquilo que sou e que complementa o significado da frase anterior.

O que eu digo com esta frase, não é que eu tenho dificuldades em aprender e internalizar conceitos, eu reconheço através desta sentença que eu tenho um processo mais lento de internalizá-los. Este processo se caracteriza pelo fato de que eu normalmente fico inquieto se eu não explorar todas as possibilidades, se eu não sentir que estou fazendo as perguntas certas e sentir que eu entendi completamente os significados e as significâncias, o que por muitas vezes significa entender, inclusive, a escolha de palavras utilizadas para a expressar a ideia que estou estudando. Isto me leva a fazer perguntas que estão fora do "interesse comum" dos meus colegas. 

Eu aprendi a perceber que muitas vezes as outras pessoas acabam por aceitar os conceitos at face value (acho que a melhor tradução seria ao pé da letra), enquanto eu acabo tentando me aprofundar neles e isso acaba me gerando frustração, porque muitas das vezes as perguntas que eu tenho por fazer não são fáceis, e em algumas das vezes elas não foram respondidas ainda. Entender essa particularidade da minha personalidade me ajudou a chegar na minha primeira conclusão: todo mundo tem as suas particularidades e compreendê-las torna possível reconhecer e valorizar o seu próprio trabalho.

Evidência anedótica - viagem para São Carlos e a fatídica qualificação

No finalzinho de 2022 eu já tinha reconhecido os problemas comentados acima e estava tentando trabalhar em corrigi-los, foi então que eu tive uma conversa com o meu orientador, na qual ele me disse: "Luiz, você não precisa se comparar com os outros. Você é um dos únicos físicos teóricos do nosso departamento, sua pesquisa é difícil e você está realizando ela quase que sozinho [...] a maior parte das pessoas finge que sabe o que está fazendo [...] na realidade, isto aqui é tudo um grande teatro". Após essa conversa eu fiz uma viagem para a semana de física teórica que aconteceu na USP - São Carlos, na qual vários pesquisadores do exterior iriam dar palestras e também uma escola em avanços em estudos de mecânica estatística.


Em preparação para a viagem, eu fiquei extremamente ansioso e comecei a me comparar com a fantasia do que seriam os alunos da USP com os quais eu compartilharia a semana. Eu tive a sensação de que eu não deveria estar ali, de que todo mundo era muito mais qualificado do que eu para participar daquele evento. A conclusão foi: muitas das pessoas que eu convivi durante esses dias eram realmente mais capacitadas do que eu, em grande parte, pessoas que já trabalham na área há mais de 10 anos. Entretanto, uma grande parte dos alunos que estavam no mesmo ponto que eu da jornada acadêmica tiveram as mesmas dificuldade conceituais, a diferença é que em sua maioria eles ostentavam uma imagem de aluno da USP, e muitos deles não chegaram a participar de toda a escola. Eu percebi que esses alunos projetaram uma imagem de sabichão, assistiam uma aula e pulavam fora. No discurso eles mostravam que eram especialistas (muito mais do que os próprios professores), mas no fundo, tinham as mesmas dúvidas que eu. Eu conheci também algumas pessoas que foram honestas comigo e me mostraram o real propósito do evento: conhecer o trabalho dos outros pesquisadores, saber quais são as técnicas e os conceitos apresentados e estabelecer redes de contato, a não ser que você também estude o assunto é impossível, na duração do evento, que você aprenda tudo. E isto abriu a minha mente: só quem sabe do assunto em questão é realmente quem o está estudando, eu incluso.

Armado com esse pensamento eu retornei para casa e finalizei a minha dissertação do mestrado. Durante a minha qualificação eu fiquei ansioso para apresentar, mas eu já não me cobrava tanto, afinal dos aspectos que eu abordei no meu trabalho: EU era o especialista. Me foram feitas perguntas, algumas das quais eu não tinha a resposta, mas eu reconheci que elas partiam do esforço dos avaliadores em estimar o domínio sobre o meu tema e também do interesse pessoal em entender o meu trabalho. Fui elogiado pela estruturação do meu trabalho e pela fluidez do meu texto, que apesar de cheio de equações, era de fato fluído. No fim tive que fazer correções como todo mundo tem que fazer e conquistei o meu título de mestre. 

Eu percebo agora que eu não sei tudo sobre sistemas quânticos, mecânica estatística e nem sobre sistemas de impurezas (minha área de trabalho), mas que eu sou capaz de investir tempo e recursos em produzir, apresentar e argumentar sobre um trabalho estruturado nessa e em qualquer outra área correlata.

Hard skills - aquilo que fazemos

Meu trabalho envolve uma boa medida de programação. Eu não sou excepcional escrevendo código, minha experiência se resume ao conhecimento que eu obtive trabalhando com física computacional e que se restringe a problemas de cálculo numérico. Eu não sei nada de IDE, não sei programar front end, eu tenho pouquíssima ideia de como fazer engenharia de software, e nenhum conhecimento teórico em teste de algoritmo e debugging. Na maior parte do tempo eu estou tentando entender PORQUÊ meu código não se comporta do jeito que eu desejo, e isto me gera também uma boa medida de frustração.

Passar tempo resolvendo problemas práticos que eu não tenho conhecimentos práticos ou teóricos para resolver é extremamente desanimador. Por que? porque eu poderia estar empregando esse tempo para o desenvolvimento do meu trabalho em si, ao invés de estar resolvendo problemas que são mais simples e que inclusive contam com o auxílio de ferramentas modernas para sua resolução. Empregar as ferramentas corretas, não se trata apenas de ser bom em algo, não tem a ver com a minha capacidade de resolver problemas, é uma questão de realizar tarefas de maneira mais fácil e indolor, atingir objetivos com o menor nível de frustração possível e tornar nosso trabalho mais proveitoso. Desta forma, eu tenho me empenhado em desenvolver os conhecimentos necessários in media res, conforme a necessidade. Entender que não tem nada de errado em não saber resolver o problema ANTES de se fazer necessário sua resolução ajudou a reduzir o meu nível de frustração imensamente. Isto me leva à minha segunda conclusão: desenvolvemos as habilidades necessárias essencialmente de duas formas, podemos fazer cursos, resolver problemas de disciplinas, aprender com alguém mais experiente do que nós, mas não é possível estar sempre preparados para resolver os problemas que aparecem. Às vezes precisamos aprender a resolver o problema sem desenvolver toda a habilidade necessária para compreendê-lo, e está tudo bem com isso...

... e o mesmo vale para o nosso próximo assunto, os conhecimentos teóricos.

A ciência - aquilo que sabemos

Deixei esse assunto por último, pois acredito que é o assunto que mais me gera frustração. Começar o estudo em uma área nova de conhecimento envolve um esforço hercúleo de aprendizado, precisamos ler artigos diariamente, assistir palestras, participar de workshops e disciplinas, e no meu caso específico, aprender a fazer cálculos computacionais que muitas vezes eu não tenho ideia de como implementar.

Quando eu comecei o mestrado, meu orientador me bombardeou com conteúdo que eu "deveria dominar para poder desenvolver meu trabalho". Ouvi diversas vezes que "um aluno de mestrado/doutorado precisa ler pelo menos um artigo por dia". Estas afirmações me deixaram em um estado extremo de ansiedade, "como assim eu não consigo ler um artigo por dia?", "mas eu não estou entendendo esses conceitos, como eu vou conseguir desenvolver meu trabalho?". Me fiz estas perguntas várias vezes e por muitas delas eu quase desisti do meu projeto: "Como uma fraude como eu vai falar sobre esse assunto particular"?

As videoaulas e artigos pareciam tão simples pro meu orientador, mas em uma linguagem completamente diferente da minha. E é exatamente este o ponto, as coisas parecem mais fáceis para pesquisadores mais velhos e experientes, porque eles já desenvolveram parte da linguagem compartilhada pelos especialistas no assunto. Para um pesquisador começando a sua carreira acadêmica como eu, ler artigos, assistir videoaulas e seminários era uma tarefa exaustiva porquê ela realmente era. EU NÃO COMPREENDIA OS CONCEITOS. Existe uma infinidade de resultados, conceitos e jargões que são utilizados como se fossem simples, mas que exigem um arcabouço teórico extenso para sua obtenção. E que para obtê-lo eu precisava sentar e estudar, às vezes em detrimento de outras coisas que eu desejava fazer.

Tudo isto foi difícil de perceber e de admitir para mim mesmo. Hoje em dia, ler um artigo é um pouco mais fácil do que costumava ser, assim como entender palestras, e é provavelmente por isso que me sinto um pouco menos frustrado. Meu conhecimento científico melhorou. Ainda sinto que não sei nada, mas sei, pelas interações outros cientistas, que fiz progressos. Todo esse sofrimento para aprender cumpriu seu proposito. Mas foi necessário? 

Passei grande parte do meu  mestrado muito frustrado com a quantidade de trabalho necessária para aprender sobre minha área. Uma maneira mais eficiente de aprender teria me poupado muito trabalho, muita luta, muito desespero, que poderiam ter sido investidos no desenvolvimento de um trabalho melhor. Será que sou o único que se sentiu muito frustrado com isso? Quantas pessoas deixaram a ciência porque esse sentimento de frustração foi intolerável? Parece que existe a exigência de uma pré-disposição para ser cientista, um sentimento de: neste ambiente só os melhores sobrevivem e que eu preciso ser o melhor. Eu sempre volto à pergunta "por que EU estou fazendo ciência"?

Para mim, parte da resposta é que gosto de alimentar minha curiosidade. No entanto, durante meu mestrado, e agora no doutorado, alimentar minha curiosidade demanda muito e, portanto, acaba sendo ainda um processo muito doloroso. Por que então continuar fazendo ciência? Será que a academia é projetada de modo que os cientistas que têm sucesso (ou seja, conseguem posições acadêmicas) são aqueles que conseguem resistir a essas dificuldades? Se sim, temos certeza de que essa é a melhor maneira de selecionar bons cientistas? Ou será que existe uma maneira melhor de prepararmos os futuros pesquisadores?

Onde está o problema?

A academia tem muito a oferecer. Gosto de olhar para ela através do prisma de: "autonomia, maestria e propósito". Um dos aspectos que me seduziu é o de que temos muita liberdade em nosso trabalho (no entanto, para alunos de pós-graduação, isso depende um pouco dos orientadores), usamos as melhores ferramentas e instrumentos, trabalhamos entre pessoas altamente capacitadas, e nosso trabalho é descobrir os segredos do universo. 

No entanto, há sempre dois lados em uma moeda. A autonomia pode se transformar em solidão. A maestria muitas vezes é uma luta contra a inércia, já que novas ferramentas e ideias geralmente levam muito tempo para serem aceitas. Trabalhar com as melhores pessoas faz de você um peixe pequeno em um grande lago. Nesse grande lago, obter uma posição permanente é improvável, as oportunidades são limitadas e a competição é acirrada. Somos jogados uns contra os outros constantemente e ensinados a nos fechar em pequenos círculos que se retroalimentam. Somos ensinados a sentir um certo alívio quando alguém está deixando o campo: "uma pessoa a menos para competir!"

Não faço ideia se as outras pessoas às vezes sentem o mesmo na escuridão de suas mentes. De mesma forma, só consigo ter uma ideia de quanto nosso ambiente competitivo sufoca a cooperação, impede o compartilhamento de nosso conhecimento e nossas ferramentas com os outros, e alimenta o desejo de dificultar que outros se tornem cientistas habilidosos (pelo menos mais habilidosos do que nós).

Eu particularmente acredito que cabe a nós, a nova geração de pesquisadores, lutar contra esses problemas. Recuperar o ideal de construção conjunta do conhecimento. Uma das frases que mais me cativou a fazer ciência e me levou a terminar a minha graduação foi a frase que é atribuída ao Sir Isaac Newton: "se cheguei onde cheguei é porque me sustentei sobre os ombros de gigantes".  Precisamos recuperar o nosso propósito como cientistas, já  que com o tempo nos tornamos parte de mais uma elite e que coletivamente procuramos assim nos manter.

Acredito que como futuros cientistas temos o dever de aprender a conhecer nossas limitações e entender que a maior parte do problema da frustração vem da cobrança que é imposta sobre nós por outros, pela manutenção de um sistema hierárquico seduz com suas regalias. Devemos nos responsabilizar e trabalharmos em nossas fraquezas, tomando de volta aquilo que é nosso e não nos diminuindo pelo julgamento alheio, afinal quem desenvolve o meu trabalho sou eu mesmo.

Como pesquisadores, devemos ser espíritos livres, mentes irrestritas, membros de uma comunidade e não parte de uma elite. Para isso precisamos também de um esforço de conscientização e auxílio da sociedade. É importante fazer ciência? Sim, com certeza a sociedade ganha muito com o desenvolvimento de novas tecnologias e conhecimentos, mas e quanto à saúde mental dos nossos pesquisadores? Precisamos mudar o paradigma acadêmico. Mas será que conseguiremos

...só o tempo poderá dizer. Enquanto isto, sigo cumprindo a função de pesquisador, da forma que posso, um dia por vez.

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